Sete anotações sobre "Traças"

Sete anotações sobre "Traças"
(trabalho apresentado no salão victor meirelles,
museu de arte de santa catarina, florianópolis, sc)

Carlos Asp / Fernando C. Boppré

1. De como certas obras maquinam.
Em alguns trabalhos, os problemas colocados não são decifrados no campo do imediato ou do raciocínio, mas sim, em alguma instância da memória. Após uma exposição, é possível tornar-se ainda mais denso do que se era antes. E isso não significa que a obra preencheu algum saber ou sentimento que outrora faltava. É-se feito mais de ausências do que de referências: é preciso saber lidar com isso. Depois de uma mostra, não se fica mais erudito: as coisas é que contraíram novo peso, um outro universo de irradiações possíveis.

2. De uma improvável linha do horizonte.
Desde o último Salão Nacional Victor Meirelles, permanece um Zahir: "(...) procurei pensar em outra moeda, mas não pude", confessara Jorge Luis Borges acerca de um cobre que jamais lhe abandonara o pensamento, mesmo após não possuí-lo mais. Uma linha (tão abstrata quanto o dinheiro) deslindava-se ao se aproximar da parede de fundo de uma das salas de exposição do Museu de Arte de Santa Catarina: um outro tipo de Zahir. Não se tratava, contudo, de qualquer linha. Era composta unicamente por traças (sim, traças!) dispostas com espaços regulares entre si. Na escala do micro, este improvável horizonte era praticamente invisível (muitas pessoas, por sinal, sequer perceberam o trabalho que, em sua discrição, alheava-se).

3. Do risco de desaparecimento.
Teoricamente, as traças poderiam abandonar a exposição ou, simplesmente, morrer ali mesmo, acarretando em sua sumária deterioração – problema que, certamente, causaria amplas e infrutíferas discussões entre os conservadores-restauradores. A hipótese, entretanto, não era viável. Em verdade, mortas, elas estavam impossibilitadas de qualquer movimento.

4. De um deserto.
Se possível fosse, tornar horizontal a parede em que a obra estava disposta, desvelar-se-ia um cemitério. Assinalava-se uma dupla subtração: da vida e do sepulcro. As traças apenas dispunham daquilo que lhes restara: casulos ocos, desabitados. A carne já não pulsava, apenas uma débil carapaça insistia. Pensar que o que persistia era uma ausência ou, em última instância, um deserto dentro de cada um daqueles casulos é inquietante: no interior de cada elemento da obra, havia uma outra obra ou então um outro cubo e, portanto, um novo universo de variantes possíveis.

5. Do silêncio frágil.
É neste sentido que "Traças", de Aline Dias, continua a funcionar, conquanto não seja mais preciso observá-lo novamente, em uma exposição. Paradoxalmente, era o mais frágil entre os trabalhos apresentados no último Salão Nacional Victor Meirelles. Todavia, é aquele que continua a emitir ruído ainda que imerso em um silêncio arrebatador.

6. De como se aproximar do trabalho.
"Traças" exigia ao espectador acercar-se cada vez mais daquela parede que, num primeiro momento, parecia vazia, em branco. Delicadamente posicionadas no espaço expositivo, desenhavam um tênue traço horizontal. Assim, surgia uma linha do horizonte que poderia sugerir, ainda que debilmente, uma paisagem. Uma obra que dispensa a tela, as tintas, enfim, os pressupostos materiais exigidos pelas artes plásticas por séculos. Basta-lhe a parede e a ordenação de algumas traças que costumam povoá-la.

7. Da paisagem vertical.
São momentos verticais que se alinham para formar um horizonte. Ao se aproximar ainda mais da obra, percebe-se que cada traça está posicionada verticalmente. Contudo, seu efeito último é uma horizontalidade. Um oxímoro, talvez: verticais que formam uma horizontal; retratos que configuram uma paisagem.

"O tempo, que atenua as lembranças, agrava a do Zahir." (Jorge Luis Borges)

publicado no net processo
http://www.netprocesso.art.br/oktiva.net/1321/nota/49313